Autoteste contra Covid é proibido no Brasil por regra da Anvisa

Resolução de 2015 impede exame caseiro, que ganha espaço no mundo


Folha de São Paulo
Phillippe Watanabe
5.jan.2022 às 20h13Atualizado: 5.jan.2022 às 20h51


A população já pode comprar ou conseguir gratuitamente testes de Covid-19 para serem feitos em casa. Pelo menos, nos Estados Unidos e na Europa. 

Enquanto isso, no Brasil, a testagem continua centrada em clínicas, farmácias e serviços públicos.


Esse tipo de teste de Covid não é autorizado no Brasil por causa de uma resolução da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) de 2015.


Os autotestes caseiros são exames de antígeno. A própria pessoa coleta material (com auxílio de um swab, como em um PCR normal) e o deposita sobre uma superfície que aponta se está infectada ou não.


Os testes de antígeno, que procuram partículas do Sars-CoV-2, ganharam importância na pandemia por serem mais simples, em geral mais rápidos e também mais baratos que os PCR, que detectam material genético do vírus. Assim como os PCR, podem apresentar elevada capacidade de detecção do vírus.


O artigo 15 da resolução 36 da Anvisa diz que não podem ser fornecidos para leigos produtos que tenham a finalidade de diagnóstico de presença ou exposição a agente transmissível, “incluindo agentes que causam doenças infecciosas passíveis de notificação compulsória”.


Isso inviabilizaria os autotestes para Covid no país, se não fosse por uma exceção. O parágrafo único do mesmo artigo estabelece que a proibição “poderá ser afastada por Resolução da Diretoria Colegiada, tendo em vista políticas públicas e ações estratégicas formalmente instituídas pelo Ministério da Saúde”.


E uma exceção para isso já ocorreu. Há alguns anos, após iniciativa do Ministério da Saúde, foram liberados os autotestes para HIV, que têm o apoio da OMS (Organização Mundial da Saúde) e da OPAS (Organização Pan-Americana da Saúde).


Antes disso, porém, havia temores quanto à liberação. Segundo Claudio Maierovitch Henriques, sanitarista da Fiocruz e presidente da Anvisa de 2003 a 2005, um deles era quanto a possíveis erros de uso do exame, o que poderia levar a resultados incorretos. Outra preocupação era com o impacto que o resultado poderia ter sobre a pessoa, principalmente ao se pensar em uma contaminação grave como a por HIV.


Mas, com o início da disponibilização de autotestes, vários desses mitos acabaram caindo, diz Henriques.


Apesar disso, procurada pela Folha, a Anvisa relata algumas dessas questões para argumentar sobre a não disponibilização dos autotestes para Covid.


Segundo a agência, instrumentos de diagnóstico desse tipo envolvem riscos que precisam ser mitigados. A entidade afirma que é necessário levar em conta “o impacto relacionado a possíveis erros de execução de ensaios, que além de reverberar na qualidade de vida dos usuários, podem afetar os programas de saúde pública”.

“Portanto, a ampliação de acesso, inclusive ao público leigo, deve ser estudada com critério quanto aos riscos, benefícios e possíveis efeitos”, diz a Anvisa.


O sanitarista da Fiocruz, porém, não vê grandes riscos envolvidos na disponibilização de mais testes. Segundo ele, os autotestes fariam parte de uma política complementar e seriam importantes para atingir mais pessoas, que hoje, inclusive, não são testadas, como aqueles com sintomas muito leves ou assintomáticos. Testagem nesse público poderia levar à interrupção de novas cadeias de transmissão.


Algo que tanto o sanitarista quanto a Anvisa destacam é que a introdução dos autotestes deveria ser uma política pública.


No Reino Unido, por exemplo, o governo disponibiliza gratuitamente autotestes, manual de utilização e indica as situações adequadas para o uso, como em dias em que a pessoa estará em contextos de alto de risco de transmissão.

Na plaquinha onde se deposita a amostra para testagem, há ainda um QR Code para notificação ao NHS (National Health Service), o sistema britânico de saúde.


Segundo a Anvisa, os autotestes teriam que ser associados “ao atendimento e apoio clínico adequados e, conforme o caso, rastreamento de contatos para quebrar a cadeia de transmissão”.


Os testes em casa também devem começar a ser usados como instrumento de saúde pública na Dinamarca. 

No país, haverá uma maior disponibilização do exame caseiro para crianças e trabalhadores de escola, com incentivo a dois testes por semana, segundo a imprensa local, em uma tentativa de manter as unidades de ensino abertas, apesar do crescimento de casos.


Em alguns países, empresas estão disponibilizando autotestes a seus funcionários e exigindo exames negativos diários para o trabalho presencial. ​


Para Raquel Stucchi, professora da Unicamp e consultora da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia), os autotestes deveriam ser disponibilizados pelo governo e seriam extremamente importantes, especialmente para o momento atual da pandemia no Brasil. 

“Para evitar que as pessoas fiquem aglomeradas em uma unidade de saúde. Isso já está acontecendo, tanto no setor público quanto no privado”, afirma Stucchi. “Autotestes agilizam muito para diagnóstico e isolamento.”


Carlos Eduardo Gouvêia, presidente-executivo da CBDL (Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial) afirma que não faltam empresas interessadas em trazer os autotestes para o Brasil.


A Folha procurou a Roche Diagnóstica e a Abbott, duas empresas que disponibilizam autotestes nos mercados europeu e americano.


A Abbott diz que tem disponibilidade para trazer ao Brasil o seu teste caseiro “assim que for permitido pela legislação brasileira” e que chegou a apresentar os autotestes para o governo como parte do portfólio da empresa.


A Roche afirmou que, no Brasil, seu autoteste não é comercializado pela limitação da legislação sanitária.


Quanto a preços para o mercado privado, as empresas não estimaram quanto os autotestes poderiam custar no Brasil. A Abbott diz, porém, que seu exame foi feito “pensando em ampliar sua disponibilidade a um preço acessível”.


No exterior, esse tipo de teste, para locais em que não há distribuição gratuita, como nos EUA, não chega a ter preços elevados (em comparação ao que há disponível atualmente no Brasil).


Segundo Gouvêia, em um workshop com a Anvisa no fim de 2021, a agência teria sido questionada sobre o tema e dito que existe a possibilidade de discussão de liberação, e que deveria ser provocada para abertura de discussão.


O presidente da CBDL diz que haverá um esforço de entidades e interessados no tema para evolução do processo. “O ideal seria que o ministério se manifestasse de forma oficial”, afirma.


Em nota à Folha, a Anvisa falou ainda que “a competência para definição de Política Públicas em Saúde é do Ministério da Saúde”.


A Folha questionou o Ministério da Saúde sobre possíveis planos para liberação de autotestes para Covid e sobre a visão da pauta quanto a essa possibilidade. A Pasta respondeu que distribui aos estados os testes já aprovados e registrados pela Anvisa.

Para reforçar a testagem da população, a Pasta contratou cerca de 60 milhões de testes rápidos produzidos pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz)”, afirma o ministério.


Vida real 

A experiência de alguns brasileiros no exterior ajuda a ter uma ideia de como esses testes podem ser usados e ser úteis no dia a dia para evitar transmissão da Covid.

No Twitter, o médico sanitarista Daniel Dourado relatou a detecção de Covid, com um autoteste, em sua filha de quatro anos, pouco antes do Ano-Novo, no qual haveria uma reunião familiar.

Encontro de família obviamente cancelado”, postou Dourado. “Estamos testando todos os dias porque viemos passar as festas no Brasil, tivemos a possibilidade de trazer muitas dezenas de testes de antígeno que compramos na Europa.”


Nas festas de fim de ano, Vitor Mori, físico e pesquisador na Universidade de Vermont (EUA), afirmou à Folha que iria visitar pessoas em Boston e que faria autotestes. “Todos os dias, a gente vai fazer um teste rápido de antígeno para garantir que não vamos estar infectados no dia da viagem.”


Mori também diz que ele e sua esposa chegaram a fazer autotestes quando uma colega de trabalho dela testou positivo.



Originally published at https://www1-folha-uol-com-br.cdn.ampproject.org on January 5, 2022.


Nomes citados

Claudio Maierovitch Henriques, sanitarista da Fiocruz e presidente da Anvisa de 2003 a 2005,

Raquel Stucchi, professora da Unicamp e consultora da SBI (Sociedade Brasileira de Infectologia)

Carlos Eduardo Gouvêia, presidente-executivo da CBDL (Câmara Brasileira de Diagnóstico Laboratorial)

Médico sanitarist, Daniel Dourado

Vitor Mori, físico e pesquisador na Universidade de Vermont (EUA),

Roche

Abbot

Fiocruz

Anvisa

Ministério da Saúde

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