health transformation
.foundation
Joaquim Cardoso MSc
February 14, 2024
Este e um excerto do artigo “Cidades brasileiras – A agenda que entrará no radar dos eleitores”, com foco na Saúde, de autoria de Solange Monteiro, publicado na revista Conjuntura Economica.
Conjuntura Econômica
Solange Monteiro, do Rio de Janeiro
Fevereiro de 2024
As cidades são parte das pessoas para além do gentílico. Cidades definem oportunidades. Muitas vezes, são novos planos de estudo ou trabalho que fazem pessoas mudar de CEP. Também são as cidades que alimentam nosso medo diuturno de assalto, nosso cansaço no trânsito, nosso anseio por bem-estar.
Esse caldeirão de sentimentos alimenta o radar dos candidatos a prefeito, que os processam e transformam em promessas em geral de curto prazo, nem sempre compatíveis com melhoras sustentáveis em serviços públicos como mobilidade, segurança, saúde e educação, como mostram os especialistas ouvidos pela Conjuntura Econômica, neste pontapé inicial para o debate em torno das eleições municipais de 2024.
Além de políticas públicas de qualidade, formatadas com base em evidências, o sucesso das gestões municipais também dependerá de como os prefeitos conseguirão navegar sob um quadro fiscal que, de acordo ao atual cenário, aponta a um alto nível de volatilidade. “Em linhas gerais, 2023 marcou uma piora significativa no déficit primário dos governos municipais, e parte desse resultado decorre de questões que não estão à mão dos municípios resolverem”, diz Vilma Pinto, diretora da Instituição Fiscal Independente do Senado (IFI).
Comparativamente às eleições anteriores, “ensanduichadas” entre um duro processo de recuperação econômica depois da recessão 2014-2016 e o início da pandemia de Covid-19, o panorama, aos olhos do eleitor, é claramente melhor. “Graças a uma conjunção positiva de fatores, os atuais prefeitos iniciaram seu mandato sem problema de caixa, e puderam realizar investimentos que já no segundo ano de mandato foram em nível muito superior ao observado na gestão anterior”, afirma a economista Tânia Mara Cursino Villela, sócia-diretora da consultoria Aequus. “Desse contexto econômico mais favorável também faz parte o atual cenário macroeconômico nacional, com taxas de desemprego menor, inflação cedendo, o que tende a refletir na percepção do eleitor sobre as gestões atuais”, completa Vilma. Um dado não menor é o levantamento da Confederação Nacional de Municípios (CNM) que mostra que mais de 3.510 prefeitos podem se candidatar à reeleição em 2024, representando 63% dos gestores atuais.
Essa onda benigna se deu por fatos positivos tanto do lado da receita quanto da despesa. Do lado da receita, além do socorro extraordinário federal para o enfrentamento da pandemia – “principalmente o da Lei Complementar 173, de 2020”, destaca Tânia – houve também um aumento de receitas. Em 2021, a cota-parte do ICMS registrou uma taxa real de crescimento de 17,1%, ressalta Tânia, graças ao aumento do preço da energia e combustíveis. A disparada da inflação também colaborou para engordar a arrecadação de impostos. Levantamento dos pesquisadores Ursula Peres e Fábio Pereira dos Santos publicado pelo Centro de Estudos da Metrópole da USP mostra que em cidades com mais de 50 mil habitantes, por exemplo, somente a arrecadação de ISS registrou um salto de 28% entre 2018 e 2022 – ambos os exercícios representam o segundo ano de mandato de prefeitos. Do lado das despesas, por sua vez, o período de isolamento impôs uma redução de gastos em atividades como manutenção de escolas abertas e a promoção de eventos culturais, impossibilitados pelo isolamento, além do congelamento de salários e novas contratações no funcionalismo até dezembro de 2021, contrapartida exigida pelo governo federal em troca do apoio financeiro para mitigar os efeitos da pandemia. Essa combinação de fatores possibilitou, aponta o levantamento da USP, um aumento dos investimentos em 94% na média dos municípios em 2022 comparativamente a 2018. “No caso de cidades com 50 mil a 100 mil habitantes, o crescimento foi ainda maior, de 134%, com destaques para obras de urbanismo e transporte”, aponta a nota técnica da USP.
Como estavam apoiados em eventos não recorrentes, entretanto, esses resultados começaram a se dissipar. “No pós-Covid, se houve algo novo foi na direção contrária, para minar a sustentabilidade dos municípios”, afirma o especialista em contas públicas José Roberto Afonso. “São vários atos e fatos, mas destacaria a recorrente aprovação, em Brasília, de medidas que reduzem receitas – quando se desonera o ICMS de combustíveis, por exemplo, um quarto da conta é pago pela cota municipal – e que aumentam despesas, caso emblemático da fixação do piso de enfermagem, sem compensação financeira adequada e suficiente”, enumera.
Saúde: pensar regional
Os serviços de saúde pública são um dos mais fiéis espelhos das desigualdades presentes nos 5.570 municípios brasileiros.
A heterogeneidade observada em tamanho da população, autonomia fiscal e financeira e capacidade administrativa de cada um dos municípios se reflete diretamente no provimento desse serviço, da atenção básica a procedimentos de alta complexidade.
“É verdade que o empoderamento dos municípios nessa área, com o recebimento de recursos federais por transferências do Fundo Nacional de Saúde (FNS), contribuiu para melhorar o acesso a serviços básicos – cuja responsabilidade se concentra na esfera municipal.
Ao mesmo tempo, entretanto, aumentou a inequidade nesse acesso, dado que nem todos os municípios tiveram a melhor combinação das transferências com sua capacidade própria de arrecadação ou tiveram a melhor capacidade técnica e administrativa para implementar as políticas de saúde”, afirma André Medici, especialista em economia da saúde. “Como corolário, existem áreas de excelência nessa cobertura de saúde, bem como enormes vazios assistenciais”, descreve.
Medici destaca que, durante a pandemia, essa desigualdade assistencial ficou patente.
Para ilustrar, ele cita estudo realizado pelo Instituto de Economia e Administração (IEA) da USP que demonstra que a expansão dos casos de Covid-19 não ocorreu uniformemente no estado de São Paulo.
“Nos municípios com até 20 mil habitantes o aumento médio dos casos de Covid-19 foi de 503% no segundo semestre de 2020, e estes iniciaram o ano de 2021 com as maiores taxas de contaminação do país.
Se considerarmos apenas a situação dos municípios com até 5 mil habitantes, o aumento foi de 850%”, descreve, o que sinaliza, diz, a baixa capacidade desses municípios para coordenar medidas que vão da comunicação social à detecção de casos e de saúde pública propriamente dita.
Para mitigar essas diferenças, Medici afirma que a chave é pensar o planejamento de saúde de forma regional.
O repasse de recursos, tanto para custeio quanto investimento dos estados, deveria estar associado a projetos de investimento de cada esfera, mas dentro de um processo de coordenação de redes de saúde ou regiões de saúde que demonstrem investimentos conjuntamente planejados nessas esferas.
“Atualmente, estados e municípios recebem suas transferências em ‘silos’ e não discutem projetos coordenados de investimento e custeio de suas ações de saúde”, diz.
Essa defesa é compartilhada pelo médico sanitarista Gonzalo Vecina, professor da FGV e da USP.
“O ideal é que implantássemos um modelo em que o dinheiro fosse programado conforme o tamanho da população, integrando as demandas de uma região, planejadas entre os municípios dessa mancha populacional”, diz. “
Dessa forma, o município teria que discutir com os demais de sua área para definir em que ele agregará de oferta de serviços, ou o que ele vai pagar para ser atendido em outro município.”
Um segundo momento desse planejamento, diz Vecina, é a integração entre municípios e o estado, que em geral é quem tem capacidade de prover a atenção secundária e terciária – onde entram as consultas de especialidade, procedimentos de maior complexidade e o atendimento hospitalar.
“O modelo que está em discussão agora no Ministério da Saúde é de que os municípios e o governo estadual têm que se entender para dizer como é o acesso a esses exames e internações de maior complexidade, pois isso está mal resolvido no Brasil inteiro.
Esse talvez seja o maior desafio deste momento no SUS: criar redes de atenção à saúde cogerenciadas entre municípios e estados para garantir acesso à média-alta complexidade”, afirma.
“Hoje temos um monte de pequenos hospitais e um monte de UPAs que deixam o município feliz por estar aplicando dinheiro em assistência à saúde, gerando empregos, mesmo sem conseguir oferecer ou financiar procedimentos mais importantes, como cirurgias cardíacas”, descreve.
Para o especialista, com uma programação mais adequada às necessidades regionais – estudos apontam entre 300 e 400 no país – poderia-se ganhar em eficiência na alocação dos recursos federais, que em média representam metade do orçamento de saúde dos municípios.
Vecina afirma que isso também colaboraria para um incremento da qualidade da atenção primária hoje oferecida nos municípios que, em sua avaliação, subexplora o foco na saúde da família.
“Mesmo São Paulo, que é uma cidade com importante arrecadação, onde a oferta de saúde municipal se estende a hospitais, isso não é feito adequadamente. A cobertura paulistana dessa atenção sob a estratégia de saúde da família é de 45%, e deveríamos chegar ao menos a 65%”, diz.
Nesse sentido, Vecina defende que a ampliação das Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) foi um problema criado na tentativa de fazer a coisa certa. Na avaliação do professor da FGV EAESP, esse formato peca por ficar no meio do caminho entre uma atenção horizontal e a ambulatorial. “Se, por exemplo, um diabético que sente uma dor for a uma UPA, ele será atendido e medicado para esse sintoma, mas não terá a obrigação de voltar, fazer controle de glicemia, ou checar se tem algum problema cardíaco derivado da diabetes”, diz.
“Tudo que se faz numa UPA, poderia ser feito na saúde da família, cuja estratégia é a de se ter um médico para cada 2,5 mil a 3 mil habitantes. Isso significa que esse médico tem que atender demanda, não só consulta agendada.”
Por outro lado, se a UPA não chega a oferecer um atendimento horizontal, tampouco tem a atenção de um pronto-socorro, que é uma unidade com acesso a leitos, para atender pacientes de maior gravidade. “Ou seja, temos um modelo de manutenção cara, e ficamos sem recursos para a expansão da atenção de saúde da família ou do financiamento de procedimentos de mais alta complexidade.”
Outro ponto positivo de uma maior articulação entre estado e agrupações de municípios, afirma, seria um melhor gerenciamento da demanda.
“Temos que perseguir o modelo estabelecido para os transplantes, com filas organizadas e únicas. Hoje, por exemplo, a cidade de São Paulo conta com filas para consultas, a do estado (CROSS) e a do município (Siga), e ambas ainda não conversam como deveriam. O resultado é um absenteísmo que alcança 40%”, diz Vecina. “Com a rigidez do formato das transferências e a falta de uma coordenação prévia no planejamento das ações, acaba ocorrendo baixa eficiência, baixo retorno dos recursos transferidos e, muitas vezes, devolução de recursos”, reforça Medici, lembrando, nesse campo, da importância da integração de sistemas de informação em saúde nos diferentes níveis de atenção e entre os entes federativos, e facilitar o compartilhamento de dados para uma gestão mais eficiente e integrada. “Adiciona-se a tudo isso o processo esquizofrênico de desviar cada vez mais recursos para emendas parlamentares, que acabam fazendo investimentos ‘fora da caixa’, muitas vezes de resultados duvidosos, já que estão mais alinhados com os interesses políticos dos parlamentares do que com as reais necessidades de suas regiões”, afirma, defendendo o fortalecimento de processos de transparência e prestação de contas dos recursos transferidos.
Comunicação é chave
Paulo Almeida, diretor-executivo do Instituto Questão de Ciência (IQC), também defende a gestão municipal como o ambiente nativo para o desenvolvimento das chamadas behavior insight units, para o desenvolvimento de ações que incentivem boas práticas nesse campo, colaborando para a efetividade de políticas públicas.
“Além de mostrar a importância da estrutura e da capilaridade do SUS para fazer frente à pandemia, a experiência de Covid-19 também mostrou a importância de se articular lideranças locais para ampliar a abrangência de campanhas, além do uso de ferramentas de economia comportamental para o sucesso destas”, diz, defendendo que essas iniciativas deveriam estar na agenda dos governos de forma permanente.
“Por exemplo, vamos partir do pressuposto de que muitas vezes a falta de comparecimento ao posto de vacinação não é movida por um movimento antivacina, mas por fatores como horário de funcionamento incompatível com o horário de trabalho dos pais.
Então, com pequenas intervenções comportamentais que custam pouco, é possível melhorar a efetividade de campanhas. Um teste de pré-agendamento de horários poderia sinalizar essas janelas de maior disponibilidade e ajudar a ampliar a cobertura vacinal”, cita Almeida.
“Ou, ainda, campanhas de comunicação por SMS com foco em pessoas que moram perto de determinado posto, sobre um assunto relativo ao seu perfil.
Há muitos experimentos interessantes acontecendo, e excelentes cientistas prontos para desenvolver planos municipais”, diz Almeida, lembrando que o objetivo de ações desse tipo não é interferir no poder de decisão das pessoas, mas incentivá-las a adotar bons comportamentos coletivos. (S.M.)