Mescape
Mônica Tarantino
20 de dezembro de 2021
Em entrevista ao Medscape, o novo presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC), Dr. Paulo Marcelo Gehm Hoff, fala sobre as prioridades de sua gestão, iniciada em novembro, que terá duração de dois anos. A chapa foi eleita por aclamação e empossada no último dia do 22º congresso da sociedade, realizado de 17 a 20 de novembro na Bahia.
O Dr. Hoff é oncologista, professor titular da disciplina de oncologia clínica no Departamento de Radiologia e Oncologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e diretor-geral do Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (ICESP).
Na iniciativa privada, está à frente do Grupo Oncologia D’Or e do Projeto Oncologia na Rede D’Or São Luiz.
Também é membro da Academia Nacional de Medicina e suplente do Conselho Deliberativo do Hospital das Clínicas da FMUSP. O Dr. Hoff foi o primeiro brasileiro a integrar a diretoria da American Society of Clinical Oncology (ASCO).
O câncer já é visto como um problema de saúde pública no Brasil?
Dr. Paulo Hoff: Acho que sim, por uma parte da população e em alguns estados.
São Paulo, por exemplo, tem mostrado um grande comprometimento com o tratamento do câncer, porém, não é o que se vê em algumas outras unidades da federação.
Sem querer ser injusto, de modo geral ainda não foram tomadas as medidas possíveis para tratar um problema de saúde pública como o câncer, com mais de 600 mil novos casos a cada ano.
Vou citar um exemplo: nós temos no Brasil uma política nacional de testagem para detectar precocemente o câncer de colo uterino e o câncer de mama, mas não temos uma política de prevenção contra o câncer de intestino, que é o segundo mais comum entre as mulheres — mais frequente inclusive do que o câncer de colo uterino.
Igualmente, apesar de existirem exames para a detecção precoce do câncer de pulmão em pacientes tabagistas, não temos uma política para viabilizar a realização desses testes.
Portanto, ainda há muito espaço para o governo fazer mais e melhorar o enfrentamento da doença. Quando falo em governo, estou me referindo às três esferas — federal, estadual e municipal.
Penso também que há um espaço importante para melhorar o conhecimento sobre o câncer, para disseminar mais informações. Digo isso porque já vi muitas pessoas, incluindo pacientes, que não querem sequer falar o nome da doença.
O avanço das políticas públicas e a disseminação de informações sobre a doença serão bandeiras da SBOC?
Dr. Paulo Hoff: Posso afirmar que vamos seguir o mesmo caminho trilhado até agora.
A SBOC tem sido muito ativa na promoção do desenvolvimento profissional e do acesso aos tratamentos.
Cito especialmente o diretor executivo da SBOC, Renan Clara, que tem feito um trabalho muito importante e extremamente eficiente.
Como ele decidiu assumir outras atividades, pedi à Marisa Madi, que me ajudou a montar o Comitê Estadual de Referência em Câncer, para vir nos apoiar.
- Iremos trabalhar para ampliar o acesso tanto à saúde suplementar como à saúde pública, que é onde 80% dos brasileiros recebem tratamento.
- Vamos certamente procurar o diálogo com todas as partes envolvidas no tratamento do câncer: os planos de saúde, o Ministério da Saúde, a Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), os pacientes e a indústria farmacêutica.
Nesse sentido, um papel importante para a sociedade de oncologia talvez seja o de “fazer um meio de campo”, representando os médicos e os pacientes nessa discussão.
Os planos de saúde dificultam o acesso a tratamentos orais contra o câncer, o que aumenta a judicialização. Além disso, medicamentos já aprovados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) demoram muito para serem incorporados ao rol da ANS. Como lidar com isso?
Dr. Paulo Hoff: Essa é uma discussão relativamente antiga. Em maio de 2013, o país aprovou a Lei da Quimioterapia Oral (12.880/2013), proposta pela então senadora gaúcha Ana Amélia Lemos, que obrigava o custeio e o fornecimento desses medicamentos pelos planos de saúde aos pacientes em tratamento domiciliar.
Mas a regra acabou prejudicada por uma decisão da ANS de criar uma lista de produtos a serem incorporados com atualização feita a cada dois anos.
Do ponto de vista médico, saber que existe uma droga aprovada no país, que é necessária a um paciente, mas ter que esperar dois anos pela sua incorporação à saúde suplementar não faz nenhum sentido. O paciente pode nem mais estar vivo quando essa incorporação ocorrer.
Hoje, novas resoluções normativas e medidas provisórias estão alterando os prazos para a atualização das coberturas da saúde suplementar e pública, o que teoricamente é muito bom, mas resta saber como e quando essas mudanças serão efetivamente colocadas em prática.
A realidade é que não podemos mais continuar como estamos, com os pacientes esperando até dois anos por remédios essenciais ao seu tratamento e que já deveriam estar disponíveis, o que não ocorre por uma morosidade inexplicável de estruturas que seguramente poderiam ser muito mais ágeis.
Também é importante que a sociedade discuta como serão distribuídos os recursos para o tratamento do câncer e chegue a um consenso. Nenhum país do mundo se propõe a oferecer todos os recursos para todo mundo, porque isso é impossível.
Precisamos garantir o que funciona a quem precisa, e isso implica uma codificação sobre como o produto deve ser utilizado.
Do ponto de vista médico, saber que existe uma droga aprovada no país, que é necessária a um paciente, mas ter que esperar dois anos pela sua incorporação à saúde suplementar não faz nenhum sentido.
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Como sair desse impasse na rede suplementar?
Dr. Paulo Hoff: Neste momento, as discussões no Congresso Nacional precisam abordar a modificação do prazo dado à ANS para atualizar a sua lista de incorporações.
Se a droga foi aprovada no Brasil pela Anvisa, quanto tempo a ANS deveria ter para fazer uma avaliação e determinar sua inclusão na saúde suplementar? Isso precisa ser definido. Certamente não podem ser dois anos.
Na rede pública, a aprovação de um novo medicamento contra o câncer pela Conitec não é garantia de acesso. O que precisa mudar?
Dr. Paulo Hoff: Sim, também não adianta ter a aprovação de um produto pela Conitec se isso não estiver associado a uma estratégia de incorporação efetiva para que o paciente possa receber o medicamento.
Posso dar o exemplo clássico de alguns medicamentos da classe dos inibidores da tirosina quinase, usados no tratamento do câncer de pulmão, que foram aprovados pela Conitec. Porém, a Autorização de Procedimento de Alta Complexidade (APAC), uma fórmula utilizada para o pagamento do tratamento dos tumores, não foi atualizada para essa situação e o Ministério da Saúde não fez uma compra centralizada da medicação. O resultado? Apesar de o remédio estar aprovado, não estava disponível.
Na prática, se você não tem um ajuste do pagamento para o pacote de tratamento daquele tumor na rede pública e não tem a compra centralizada, fica muito difícil, porque o tratamento desses pacientes vai resultar em déficit para as instituições, que já trabalham com orçamentos muito apertados.
Isso porque os novos remédios têm preço muito diferente do custo dos tratamentos anteriores precificados na APAC. O mesmo ocorre com novos imunoterápicos aprovados pela Conitec.
E o que pode ser feito para sair desse impasse?
Dr. Paulo Hoff: Como estamos falando de medicações de altíssimo custo, o mais lógico seria uma compra centralizada pelo Ministério da Saúde, que, por ser um grande comprador, pode negociar um preço melhor.
O Ministério poderia então distribuir os créditos do produto para as instituições e Secretarias Estaduais de Saúde.
Incorporar uma medicação sem dar condições financeiras para que o produto chegue ao destinatário final não resolve.
Incorporar uma medicação sem dar condições financeiras para que o produto chegue ao destinatário final não resolve.
Todo dia surgem novas terapias direcionadas e personalizadas, que custam cada vez mais caro. O acesso aos novos tratamentos ficará cada vez mais restrito?
Dr. Paulo Hoff: Câncer não é uma única doença, mas um conjunto de doenças diferentes.
À medida que a ciência se aprofunda no conhecimento da biologia tumoral, os tratamentos também se tornam cada vez mais distintos, e isso traz pelo menos dois novos problemas.
- Primeiro, em vez de uma discussão sobre acesso a um novo tratamento, são necessárias dezenas ou centenas de discussões;
- e o segundo problema é que, como são tratamentos destinados a subgrupos, a escala é muito menor.
O câncer de pulmão, por exemplo, é muito comum no mundo inteiro e o segundo mais comum em homens no Brasil, porém, hoje sabemos que a doença é dividida em dezenas de subtipos, formando grupos de 1% ou 3% dos pacientes. Neste caso, as empresas não têm incentivo para reduzir o custo do remédio, porque o número de usuários é baixo, dificultando a depreciação do investimento.
Se o tratamento for curativo, certamente a balança do custo-benefício vai pender a favor do tratamento.
- Mas boa parte desses tratamentos estabilizam a doença. Então, você tem um gasto continuado, que vai adicionando ao preço do tratamento em longo prazo.
- Por outro lado, à medida que as indicações de uso de um medicamento aumentam (ou seja, o produto inicialmente indicado para o tratamento de um tipo de tumor passa a ser recomendado para como abordagem terapêutica para outros tumores ou doenças) deveria haver uma redução no preço.
O que se pode fazer para que essa redução ocorra?
Dr. Paulo Hoff: Esse não é um problema apenas brasileiro. Por isso, a solução tem que ser mundial.
- O Brasil representa hoje mais ou menos 4% a 5% do consumo de produtos antineoplásicos no planeta.
- Os Estados Unidos representam 50%.
Se você não tiver os grandes compradores, que são os Estados Unidos, o Japão e a antiga Europa ocidental, trabalhando juntos para reduzir o preço, não haverá conquistas nessa direção.
Essas três regiões juntas representam mais de 75% do consumo mundial. É necessário trabalhar em uma articulação mundial e nacional para trilhar esse caminho.
A mesma pergunta pode ser feita sobre os testes para genéticos em oncologia.
Dr. Paulo Hoff: Esse é um campo que evolui muito rapidamente. O tempo para analisar o código genético é cada vez menor e os custos estão caindo.
Já se pode fazer o Exoma inteiro de um paciente no Brasil por menos de mil dólares. E isso vai diminuir ainda mais, o que permitirá a identificação de pacientes e familiares em risco e a escolha do melhor tratamento.
Há dois tipos de testes.
- Um deles é feito com células germinativas, para ver se o paciente tem alterações que facilitam o surgimento de certos tumores.
- E há os testes somáticos, realizados nas células tumorais para identificar as mutações que o tumor sofreu.
Ambos são necessários e ainda muito caros.
Qual é a perspectiva de barateamento destes testes?
Dr. Paulo Hoff: Se você olhar em termos de dólar, o preço já caiu muito, apesar da disparada do dólar. O que mostra como tinha gordura nesse preço, não é mesmo?
Recentemente, o Congresso Nacional aprovou o Estatuto da Pessoa com Câncer. O texto prevê a obrigatoriedade da prestação de atendimento integral no SUS a pacientes com a doença. Pode comentar?
Dr. Paulo Hoff: O “Estatuto” traz um comprometimento do país com o tratamento adequado de todas as pessoas, criando mais oportunidades de cura e de uma vida com dignidade para aqueles que precisarão conviver com a doença.
É uma tentativa de coordenação de esforços para que o tratamento seja completo. Afinal, a abordagem do câncer não envolve apenas o uso de medicamentos e técnicas de radiologia, mas pede estratégias de prevenção, diagnóstico, tratamento inicial, cirurgias, psicologia, nutrição e cuidados paliativos.
A abordagem multidisciplinar e coordenada será sempre a melhor, assim como a gestão adequada dos recursos permitirá que mais pessoas sejam tratadas.
Não podemos fechar os olhos para a necessidade de gerenciamento dos custos para ampliar o acesso.
Originally published at https://portugues.medscape.com.
Nomes citados
Paulo Marcelo Gehm Hoff, o novo presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica (SBOC)
Renan Clara, ex diretor executivo da SBOC
Marisa Madi, diretor executivo da SBOC
Ana Amélia Lemos, então senadora gaúcha